quinta-feira, 22 de abril de 2010

Contos Doentios

ELE É DE CANCÊR
João Paulo Querino

Em um encontro com outras mulheres também traumatizadas percebi que eu não era a única fêmea anatômicamente incompleta. O que surpreendeu as minhas companheiras de crise foi como eu cheguei a ficar naquele estado. Algumas realmente sabiam como eu me sentia, delas umas já nasceram sem, outras perderam na luta contra o cancêr, mas eu, entreguei minha teta esquerda para meu filho.

Numa das seções, em um papo sobre bebês, chegamos a comentar sobre os hábitos dos nossos filhos quando pequenos.

Alguém disse "Meu filho só mamou até os 10 meses"
"Isso é normal" ecoou por vários cantos da sala
Outra delas disse "Meu filho mamou até os 2 anos"
Olhei ao redor e percebi a cara de desaprovação das outras mulheres, não era certo uma criança passar tanto tempo se alimentando só de leite
Respirei fundo e disse "O meu filho mamou até os quarenta e cinco anos de idade"

Foi um parto normal, seus traços eram obra inegável do meu DNA, um nascimento tão óbvio quanto uma mão gestante que dá luz a cinco lindos dedos esguios. Logo que nasceu, ele só calou o choro quando colocou a boca no bico do meu peito esquerdo, de onde nunca mais saiu. Meu filho foi crescendo, meus seios diminuindo. Sim, plural, dois, talvez por não aguentar a barra sozinho o seio livre estivesse enviando leite pro seio escolhido, encolhido. Na verdade com o passar dos anos eu já não sabia mais o que era seio, bico, boca e bochecha, os poros se confundiam, virou uma visão grotesca e bizarra de um tecido confuso digno de freak show. Eu fazia tudo carregando meu filho no colo, ia as compras com ele grudado, ao banheiro com ele ao meu lado, o pequeno leitão não parava de mamar nem se eu saísse correndo freneticamente na chuva. Ele estava preso ou meu mamilo como uma sanguessuga maldita, mamando, sugando sem parar, arrancando de mim tudo o que eu ingeria. Comecei a comer por dois. Ele cresceu e para as pessoas na rua viramos uma espécie estranha e rara de irmãos siamêses. Na verdade ele não parava mais de crescer.
"Filho você já tem 18 anos, já está na hora de colocar a boca em outros lugares"
Ele olhava pra mim, eu sabia que ele me ouvia, me entendia, mas ignorava.
O corpo dele se desenvolveu tanto que eu parecia uma chupeta em sua boca, não era mais eu que o carregava, virei apenas uma extensão do seu rosto. Mais de 3 metros de filho. O mais interessante, é que talvez por só fazer o mesmo movimento oral, meu filho não desenvolveu dentes, pelo menos eu não sentia nenhum ardor na fricção entre sua boca e o meu bico. De início pensei que de tanto esforço meu seio esquerdo chegaria a sangrar, mas nunca caiu sequer uma gota fora da boca do meu bebê, se ele sugava também meu sangue, nunca poderia saber. Algumas pessoas me enviavam cartas, sms, e-mails ou até me ligavam e lá em cima eu lia, era a unica forma de conversar com as pessoas la embaixo. 5 metros de filho. Me proporam cirurgias das mais diversas, mas eu não conseguiria sequer pensar em fazer algo que pudesse machucar meu querido filho. Prefiro machucar só a mim. Um dia, em mais uma visita a um Doutor, ele desacreditado me propôs a retirada da mama. Eu aceitei.

Não existe mais o que sugar de um pedaço restrito de carne, mas acredito que a ilusão ainda é um grande motivador. Hoje meu filho vive bem com um peito murcho e morto na boca.


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