quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Contos Doentios








Um Dispensável Conto Natalino

João Paulo Querino

Bem, essa história não tem a ver com o Natal, apesar de conter elementos natalinos, ela apenas acontece no dia do Natal. Uma data inválida para o personagem principal que é para quem devemos fingir que seus atos são os mais importantes para nós, que seus pensamentos são válidos, interessantes e que fazem o maior sentido. Aquele tipo de coisa que devemos fazer pra pessoas carentes de atenção e afeto. Sim, nós temos como protagonista uma pessoa desprovida de carinho. Ou excesso de carinho falso. Um mergulho na superfície, como ele prefere chamar.

Seu nome, Escarro.

Sua amiga, Pus.

Pus esbarra em Escarro.

- Poxa! Ainda bem que cruzei com você na rua, nem pra me ligar ou mandar uma mensagem de Feliz Natal, né!? Não basta ter esquecido meu aniversário?

- Oi Pus, você sabe que eu sou meio disperso, esqueço esse tipo de coisa, mas sobre o Natal, desde quando alguém tem obrigação de desejar felicidades pro outro?

- Ih! Você como sempre revoltadinho, desfilando simpatia pro mundo atrás de uma máscara neutra. Não tem nem consideração pela amiga...

- Ha ha! Se eu fosse desejar felicidades pra alguém e isso desse certo eu seria o homem mais feliz do mundo! Mas tô aqui ainda procurando um sentido pra festejar todo esse feed-back negativo do mal ano que passei. Você sabe que um feliz natal a menos não vai te fazer mal né? Tô aqui de boa, como num dia qualquer, hoje pra mim as ruas só ficam mais vazias, as lojas não abrem e tem algo além de feijão e arroz em casa, alimentando meus familiares enquanto eles me fuzilam comentando cada mudança feita na minha estética. Já que não acompanham minha vida durante o ano todo, escolhem o Natal como data pra fingir que se importam com os parentes. Se eu pudesse a árvore de natal da minha casa seria decorada com a cabeça deles.

- Mas, Escarro, esse papo todo de anti-natal é muito batido! Já cansei de ver histórias bonitinhas, pseudo-macabras, de pessoas ou serezinhos verdes que odeiam o natal por algum trauma ou que saem vomitando baboseira sem ao menos conhecer direito, falam sobre papos capitalistas, o Papai Noel e toda a história hipócrita sobre felicidade e compaixão.

- Tô ligado. Aquela história da cor da roupa do Papai Noel e a Coca-Cola, batido mesmo o assunto. Mas comigo o lance nem é contra o Natal e toda essa decoração, ir contra isso é só pra reafirmar meu ódio mesmo, eu apenas não vejo sentido em existir um dia no ano para eu abraçar pessoas que eu nem falo direito e que querem ter algum tipo de laço afetivo comigo. E desejar tanta felicidade e saúde pra um único dia, não faz sentido.

- Ah! E tem o “Grinch”, o “Jack” do Burton... O que era pra ser dito sobre isso já foi.

- Não acho. Tudo acaba feliz demais ainda pro meu gosto. Falta uma história que acabe mal, o Natal é a comemoração do nascimento de uma história trágica.

- Ai... Olha eu já cheguei a ter um pensamento parecido com o teu. Já tive até comunidades no Orkut, tipo: “Odeio o Natal e o Ano Novo”, essas coisas, sabe? Mas eu superei, vi que eu era apenas mais uma “adolescentezinha” revoltada com a vida, só porque eu não tenho pais. Achava que ia passar todas essas datas festivas sozinha, solitária, mas não, só fica assim quem quer. Bola pra frente.

- Diz isso pro porteiro do meu condomínio...

- Aí que tá, esse lance de TER que ficar junto, de TER que ser feliz, é imposto pela sociedade em que vivemos. O Natal não necessariamente precisa ser isso, não precisa TER banquetes, não precisa TER que reunir todo mundo, daí as pessoas que acabam não tendo essas coisas ficam por baixo, e os outros tendo peninha delas. Não quero que ninguém tenha pena de mim, porque não tenho pais, sou feliz assim mesmo.

- Você apenas arrumou um jeito de se divertir em cima de toda essa lama que está nos pés.

- Isso mesmo! Minha televisão, meu microondas e meu computador substituem muito bem eles. São minha família, meu pai, minha mãe, e se for pensar assim tenho até um irmão multimídia! Ho ho ho... Sem falar no “Amorzão”, durmo com ele a noite todaaaaa! É assim que chamo meu sofá. Fazem tudo pra me deixar bem e nem reclamam, huahuahua! Humor negro... Foi mal... Ah! E não vou ficar me escorando nos meus amigos, né? "Vamo chamar ela só porque ela não tem pais", fala sério!

- Eu acho interessante quem consegue fazer isso. Superar essas coisas não e tão fácil como você faz parecer ser. Tem uns vizinhos meus que são vegans, straight edges, sei lá como se definem. A informação que importa é que eles não comem nada que venha dos animais. Carne, “jamé”! O legal é que eles inventaram uma coisa interessante: eles só montam a árvore de natal no dia da Ceia, no dia 25, eles montam ela toda de verduras, legumes, frutas e tal, colocam os presentes. Meia-noite, sentam ao redor e enquanto trocam os presentes devoram a árvore. Achei o máximo. Eles fazem do jeito deles, não como impõem. Minha árvore é preta, com decoração à la Mark Ryden, mas se eu decidisse aderir a essa onda deles iria precisar chamar muitos desconhecidos pra comer minha árvore vermelha de carne, e isso vai contra toda minha idéia de não abraçar os desconhecidos.

- Ah, você podia fazer isso pros mendigos. Eles iam adorar como presente de Natal.

- Tá louca? Eles já brigam por sopa, se colocarem uma árvore de carne no meio da praça vai ser uma desgraça! Natal com mais mortes fácil, fácil. Quase suicídio coletivo meu! Sem falar as ONGs contestando contra a quantidade de animais que foram mortos pra fazer a maravilhosa árvore da solidariedade.

- Verdade, mas a minha intenção foi boa.

- De intenção boa o mundo tá tão cheio que afunda. Todo mundo quer ser bom e acaba piorando tudo. Ainda bem que pra ser bom eu nem me esforço.

- Percebe-se. Ui, lembrei! Tem uns vizinhos meus que são estranhos também, eles fazem parte de um grupo performático da cidade, dizem que não fazem teatro, nem cinema, que é uma coisa híbrida, mas que agora estão descobrindo o caminho certo para eles no mundo áudio-visual. Viagem! Tão indo pra pornografia mesmo, não assumem. Eles sempre filmam a trepa deles, filminhos caseiros e tal. Falaram que hoje iam fazer uma filmagem especial, imagina qual o tema!? E chamou alguns amigos pra filmarem. É claro que eu não aceitei, seboso meu!

- É isso?

- O quê?

- O nosso encontro com direito a espírito natalino?

- Já já tem ceia, né?

- É, né? Então... Tenho que ir. Eu vou chegar cedo pra dormir cedo.

- Ainn... Odeio ser muito subjetiva quando quero que alguém me convide. Brincadeira! Mas tudo bem. Na tua casa a ceia deve ser mais chata que você. E... Aqui eu já tenho tudo que um jantar especial para uma moça moderna e recém empregada que mora sozinha numa cidade grande merece. Nada de Peru! Me faz criar imagens nojentas pensando nos meus vizinhos. Olha aqui: pizza de frango catupiry, red bulls, e muito, muito sorvete.

- Legal... Cada um descobre sua forma de festejar, né? Era sobre isso que estávamos falando... Eu pretendo dar boa noite pra todos na sala e tentar fugir deles sem que sintam minha falta, ler um pouco do meu novo livro do Poe e dormir sossegado, sem ter que sonhar com zumbis outra vez. E tá trabalhando onde?

- Bem, eu trabalho numa fábrica &(ê) laboratório especializado em medicamentos para problemas intestinais.

- Exótico.

- Estou na área de testes.

- Começa assim mesmo, depois você deve ser oficializada, sei que você é competente, afinal a culpa foi minha quando você foi despedida da locadora de vídeos.

- Ai, nem me lembra, já tinha esquecido esse fato, se bem que: "Há males que vêm..." Enfim, esse ditado mesmo. Se não fosse a besteira que você fez e eu levado a culpa por sempre querer ser boa, eu não estaria agora em um emprego melhor, ganhando quase o triplo. Brigada. Então, posso considerar isso como um presente de Natal?

- Tanto faz.

- Hum... E você não entendeu, eu não estou em fase de teste, eu estou na área de teste. “Oficialíssima”. Eu sou uma provadora de comprimidos do tipo laxantes e purgantes. E não tenho vergonha em falar isso. Oito horas diárias de trabalho, tomo um comprimido e fico em uma salinha que tem até ar condicionado esperando o tempo certo para a pílula funcionar. Caso dê errado, tudo bem, testamos outra, caso dê certo, preencho e assino os protocolos, dou um tempo, faço um lanchinho - essa é a melhor parte, eu peço a comida que eu quiser, de onde eu quiser - depois tomo outro comprimido e o ciclo reinicia.

- Eu nem vou questionar nem tentar convencer sobre o mal que isso deve fazer pra você, porque você já deve ter todos os conhecimentos prévios sobre o assunto e tá fazendo porque quer mesmo, eu te conheço. Dinheiro fácil, com nenhum mal aparente, nem instantâneo.

- Nem ligo. Quase não faço nada e de sobra ainda perco uns quilos. Quando mandam "trabalho" pra casa, você nem imagina a "dureza" que é. Mesmo esquema e as coisas fluem bem, garantindo o dinheiro do mês. E hoje, de brinde natalino, tô levando trabalho pra casa, disseram que era pra aproveitar a ceia. Hahaha! Ai, ai... Povo infeliz. E eu tenho seguro, dos bons! Empregados nas áreas de testes têm os melhores seguros!

- Ai, ai... E eu pensando que eu era "nonsense". Eu sei que o assunto tá descendo fácil... Ops! Mas eu tenho que ir.

- Tudo bem, engraçadinho. Foi bom te ver, mesmo que seja só mais um encontro dispensável, desses que não mudam sua vida.

- Unhum... Mas não esquece (se despedem) que sua vida só está assim por causa do meu "presente" de natal.

- Claro.

Ao som de gemidos misturados com risadas natalinas com a vogal “o”, Pus esquentou a comida na Mãe, ligou o som no volume máximo que o Irmão podia e foi assistir ao Pai. Devorou o que pôde da sua Ceia, ao lado de sua família. Tomou seu comprimido logo, pra se divertir assim que fizesse todo o trabalho de casa e sentou no “Amorzão” a noite inteira.

Morreu de intoxicação alimentar. O catupiry da pizza não caiu bem com a nova química do produto que estava testando. Seu seguro, não foi pra ninguém.

Escarro chegou em casa, tomou banho, comeu e foi dormir feliz. Até esqueceu-se de ler. Não precisou fingir que estava passando mal, pois os familiares que iam pra sua casa estavam no hospital por causa de um acidente de trânsito.

No velório de Pus só Escarro, um microondas, um computador e uma tevê.

2 comentários:

  1. simplesmente... sem palavras. o final deu um nó no coraçao, olhos arregalados e fez valer a pena ter lido tudo. Parabens!

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  2. Faz um ano, né?!
    Own, o tempo passa tão depressa...
    E nosso Natal hoje foi bem mais agitado que podiamos imaginar hohohohooh

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